quarta-feira, 20 de abril de 2011

O Canto que não é Canto - A Palavra que não é Palavra

O canto é uma extensão da fala.
Até o começo do século XX, o canto é a arte de expressar a palavra através de música vocal.

Entre os séculos XVIII e XIX o melodrama foi popular e muito divulgado. Melodrama pode ser definido como um texto falado ou recitado livremente, sobre um fundo musical. Mozart incluiu uma cena em estilo de melodrama em Zäide, Beethoven em Fidelio e Weber em Der Freischütz.


Outros músicos também haviam escrito melodramas. A fala, como contraste com o canto, já tinha tradição de ser usada num contexto musical.
Schoenberg na sua composição Gurrelieder, orquestrada em 1910, foi bem explícito no prefácio de Pierrot, onde diz que a voz deve "dar o tom exato, mas depois deixá-lo imediatamente numa queda ou ascensão". Porém, na prática isso é extremamente difícil e existem muitas diferenças de opinião sobre sua produção. É fala entoada ou canto preguiçoso? Sua intenção: menos canto e mais fala entoada, reconhecendo que a fala tem sua própria melodia.


Em 1917, Milhaud incluiu um movimento para coro falado no seu ballet Les choephóres. O coro é acompanhado somente por percussão, criando uma ligação entre a fala e "barulhos" não musicais, uma idéia que reaparecerá mais tarde.


Alban Berg utiilizou "Sprechstimme" com grande efeito dramático nas suas óperas Wozzeck e Lulu. Ele criou também o que chamou de "semicantado" que ficava entre "Sprechgesang" e o canto, criando mais confusão ainda entre os termos utilizados para representar as diferenças entre o canto-falado e a fala-cantada.


A "descoberta" das músicas folclóricas do leste europeu no início do século XX começou a abrir os horizontes musicais ocidentais. Já em Boris Godunoff (1874) Mussorgsky utiliza ritmos irregulares baseados somente na irregularidade do texto falado, sem métrica poética imposta. O canto começa a se aproximar da fala.


Stravinsky, em Pribaoutky (1914), percebe que na música folclórica russa a tirania da sílaba tônica não existe. Predomina o ritmo musical. Todas são mais ou menos tonais mas, por serem pequenos, permitem um acompanhamento instrumental feito por superfícies superpostas que são mais ou menos atonais.


A linguagem começa a se libertar do sentido da palavra.
Com Oedipus Rex (1926-27) e sua Sinfonia dos salmos (1930), Stravinsky procura se distanciar do sentimentalismo provocado pela palavra utilizando o latim, uma língua fora de uso comum e pouco conhecida pelo público. Schoenberg utiliza o hebraico em Moses und Aaron (1930-31). A música vocal como linguagem musical é libertada do sentido da palavra em contexto sintático. As palavras têm sentido, mas à distância.



No final dos anos 40, John Cage começa a procurar liberade expressiva para a voz, utilizando-a como instrumento musical, sem a tirania da palavra, e compôs algumas músicas em vocalize, utilizando fonemas de forma livre e não como "texto": A flower e She is asleep. Nestas canções, cage determina os fonemas a serem utilizados pelo cantor, deixando sua ordem e freqüência de uso ao gosto deste que "cria" um texto individualizado.
Mas o grande grito de liberdade cabe a Luciano Berio na sua peça Thema (Omaggio a Joyce) de 1958. com a invenção da fita magnética o compositor tinha, pela primeira vez como: gravar e reproduzir sons atuais; manipular altura e ritmo pela alteração da velocidade de sons gravados; re-arranjar, separar e superimpor estes sons.


Isso permite que, pela primeira vez, o compositor possa compor os SONS da sua peça. Thema é baseado exclusivamente em sons vocais (a gravação de uma leitura de um texto de James Joyce por sua esposa, a cantora Cathy Berberian) subseqüentemente modificados. E a palavra é dilacerada de vez.
É o fim da palavra? Longe disso. É a libertação do compositor e, simultaneamente, do poeta do som vocal da palavra. Aumentam as possibilidades. Agora há uma multiplicidade de significados possíveis para a leitura de um texto.
Berio se beneficiou destas possibilidades dez anos mais tarde na sua obra Sequenza III (1968) para canto solo em que não temos palavras mas, sim, ruídos e fonemas como meio de expressão vocal. Na mesma época, Milton Babbitt escreve Phonemena para voz e piano.



Os compositores criam uma nova linguagem para o cantor que até hoje muitos recusam aceitar como música vocal legítima.
Agora o fonema é a unidade básica da música vocal. A palavra pode ser livre de contexto. Isso é extremamente difícil para o cantor cujo treinamento básico é sempre direcionado ao uso expressivo da palavra na música. Como ser expressivo quando não há palavras com contexto sintático? Como representar o sentido da música? Geralmente, quando um compositor utiliza fonemas em vez de um texto "com sentido", é porque ele quer, justamente, se divorciar da expressividade de um texto, fazendo a música vocal entrar no mundo da sonoridade musical sem a bagagem cultural de uma língua específica. Ao mesmo tempo, abre as possibilidades para um novo tipo de expressão musical que transcende os limites de fronteiras nacionais. 
Palavras tem uma bagagem cultural muito forte, mesmo quando usadas fora do contexto. Por exemplo: paixão. Mesmo usada independentemente, esta palavra tem sentido. Mas o que é significativo agora é que, usada fora do contexto lingüístico, cada ouvinte traz um sentido diferente a esta palavra, conforme sua própria bagagem cultural, emocional ou sentimental.

paixão
pai chão
chão pai
pá e chão
chá e pão
pão e chá
xapião
ipaxão
ixãopa
iapoxã

E entramos na sonoridade da língua tupi-guarani, observando e utilizando a palavra base "paixão" da língua portuguesa, da mesma maneira que os artistas plásticos do começo do século utilizaram a imagem no cubismo.
Nasce a poesia concreta, poesia sonora e poesia visual. As artes andaram de mãos dadas no século XX, umas influenciando as outras de uma maneira, talvez, sem precedentes no passado. Kurt Schwitters, dadaísta, compôs com influencia de Roaul Hausman, seu Ursonate entre 1922 e 1932 - um poema concreto em forma de sonata com quatro movimentos: o primeiro em forma sonata/ allegro, o segundo uma espécie de Minueto e Trio, o terceiro em forma de scherzo e o último em forma de sonata rondó com cadência. Tudo falado com base em fonemas. Somente foi republicado e levado a sério em 1972.



Certamente, o exemplo mais conhecido da utilização da poesia concreta na música brasileira é o Motet em Ré maior para o coro misto de Gilberto Mendes com o texto "Beba Coca-cola" de Décio Pignatari, de 1966.


Entramos agora na época da música da "não-intenção".
Frequëntemente, nos happenings de Cage, encontramos um grupo de músicos tocando seus instrumentos (até uma orquestra inteira) sem relação sonora entre os intérpretes, outros "músicos" fazendo ruídos, rádio ou toca-discos tocando e o próprio John Cage sentado no cantinho lendo, com amplificação, um texto seu. A idéia aqui é que o ouvinte pode escolher qualquer evento no palco para focalizar sua atenção, inclousive o texto de Cage. Porém, ele lia seus textos de maneira hipnótica, sem grandes alterações de freqüência e, subseqüentemente, sem grande sentido sintático. A palavra perde seu sentido lingüístico e a voz vira um evento sonoro como o resto.
Cage experimentou múltiplas possibilidades do uso da voz e da palavra entre suas composições. Ária (1958, escrita para a esposa de Berio), é escrita em partitura gráfica que utiliza cores para representar timbres vocais (à escolha da cantora), palavras desconexas e cinco línguas diferentes e barulhos não musicais.




Em Litany for the Whale (1981) a palavra "baleia" é reduzida às cinco letras, um fonema e uma nota designada para cada uma. Soletrando a palavra "whale" como recitação e alternando a recitação com as "respostas" em que a ordem das letras é modificada, duas cantoras apresentam antifonalmente a obra que é bastante parecida com as músicas antifonais medievais de canto chão, criando uma atmosfera quase hipnótica de veneração e contemplação. Esta sensação é ampliada pelo fato de que a obra leva meia hora para sua apresentação.




Uma das primeiras obras, e certamente até hoje uma das mais conhecidas e importantes, a utilizar a voz de maneira alterada pela amplificação ao vivo e aleatória dos harmônicos produzidos pelo cantor, é Stimmung (Afinação ou Atmosfera - 1968) de Karlheinz Stockhausen. A peça toda é baseada nos harmônicos da nota si bemol grave.




"Arte de expressar a palavra através da música vocal". Hoje, o canto se funde com som puramente musical, e a palavra pode ser alterada do seu contexto sintático. Estamos num terreno de areia movediça? Não. Estamos no "jardim de sons" citado pelo Cage. Um jardim extremamente fértil, abundante e diversificado. Estamos livres para criar abertamente através da voz, do som vocábulo, a linguagem e a linguagem sonora.


Por Martha Herr
Adaptado por Thays Baes
Bibliografia: "Arte e Cultura: estudos interdisciplinares II", 2002, pg. 15-22.

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